Por Dra. Nelzair Vianna, PhD
Pesquisadora em Saúde Pública da Fiocruz
Considerando o histórico abaixo relatado da emergência do Fungo Candida auris no Brasil, o boletim deste mês destaca um estudo que aborda as múltiplas faces desse microorganismo.
Histórico e atualizações sobre os surtos de Candida auris no país:
O primeiro caso de C. auris notificado no Brasil ocorreu em 2020 e foi identificado em um paciente internado em um hospital privado de Salvador/Bahia. Esse surto teve 15 casos confirmados.
Em 2021, ocorreu um novo surto em outro hospital de Salvador/Bahia com apenas 1 caso confirmado.
Em 2022, foram notificados surtos em dois hospitais de Recife/Pernambuco. Até hoje, o primeiro surto de Recife/Pernambuco foi o maior em números de casos registrados no país, com 47 casos confirmados e demandou atuação direta de diversas áreas da Secretaria de Saúde do Estado, da Anvisa e do Ministério da Saúde para sua contenção. Já o segundo surto no estado, teve apenas 1 único caso confirmado.
Em 2023, ocorreram novos surtos em 6 hospitais de Pernambuco, incluindo os dois hospitais que já tinham tido surtos em 2022 e conseguido controlar o número de casos. O total de casos nesses 6 surtos foi de 14 casos.
Também em 2023, surtos de Candida auris foram notificados no estado de São Paulo, onde houve apenas 1 caso identificado em um hospital de Campinas/SP e também ocorreram dois surtos no estado do Rio de Janeiro: 1 caso foi notificado na capital e outro caso foi identificado em Nova Iguaçu/RJ.
Em 2024, foram notificados 4 casos confirmados de Candida auris em um hospital de Belo Horizonte/Minas Gerais. Bem como, dois novos surtos em hospitais de Pernambuco que ainda não tinham tido surtos por esse fungo, totalizando 10 casos novos em 2024 em Pernambuco.
Ainda em 2024, ocorreu um novo surto em outro hospital de Salvador/Bahia, com apenas 1 caso confirmado.
Em 2025, já foram notificados à Anvisa surtos em um hospital de São Paulo/SP com 14 casos confirmados e um novo surto em um novo hospital de Recife/Pernambuco com 4 casos confirmados, até o momento.
Considerando todos esses dados, até o momento, já foram notificados 114 casos de Candida auris no Brasil.
Título do artigo: “The many faces of Candida auris: Phenotypic and strain variation in an emerging pathogen”
Autores: Santana DJ, Zhao G, O’Meara TR Department of Microbiology and Immunology, University of Michigan Medical School, Ann Arbor, Michigan, United States of America 2 Department of Epidemiology, University of Michigan School of Public Health, Ann Arbor, Michigan, United States of America 3 University of Georgia, UNITED STATES
Ano de Publicação: 2024
Fonte: Plos Pathology
Introdução
Candida auris tornou-se uma séria ameaça à saúde pública global, sobretudo por sua habilidade de: Persistir em ambientes hospitalares, Resistir a múltiplos antifúngicos, Escapar de estratégias tradicionais de controle de infecção.
O artigo enfatiza que o surgimento de Candida auris não se deu a partir de uma única fonte global, mas sim de múltiplos eventos evolutivos em diferentes regiões do mundo — uma característica extremamente rara em microrganismos patogênicos.
Objetivos do Estudo
O estudo teve como objetivos:
- Revisar e sintetizar o conhecimento atual sobre a diversidade genética e fenotípica de Candida auris.
- Analisar como essas variações impactam a resistência antifúngica, a persistência ambiental e a capacidade de causar infecção.
- Discutir as implicações dessa diversidade para o diagnóstico, tratamento e controle de infecções associadas a C. auris.
Em resumo: o objetivo foi compreender melhor o espectro de variações de C. auris para apoiar estratégias mais eficazes de saúde pública e clínica.
Metodologia
O estudo utilizou uma abordagem de revisão narrativa da literatura, com:
- Integração de dados genômicos, fenotípicos e epidemiológicos de diferentes isolados de C. auris.
- Análise comparativa entre os clados filogenéticos conhecidos.
- Discussão de estudos experimentais sobre biofilme, resistência antifúngica e capacidade de colonização.
Embora não tenha sido um estudo experimental original, a análise crítica de múltiplas fontes confiáveis conferiu profundidade e atualização científica ao artigo.
Resultados
Os principais achados do artigo revelaram aspectos relacionados à diversidade genética, variações fenotípicas, resistência antifúngica, persistência ambiental e diagnóstico.
Diversidade genética
- C. auris é composto por pelo menos cinco clados genéticos distintos (Sul-Asiático, Leste-Asiático, Sul-Africano, Sul-Americano e possivelmente Iraniano).
- Emergiram de forma independente em diferentes regiões do mundo.
Esta emergência “simultânea e independente” em vários continentes desafia o paradigma clássico de disseminação microbiana, sugerindo que pressões ambientais globais (por exemplo, uso de antifúngicos agrícolas, mudanças climáticas) podem ter favorecido a evolução paralela de linhagens resistentes.
Variações fenotípicas
- Diferenças observadas entre cepas em:
- Formação e robustez de biofilmes,
- Tolerância a temperaturas elevadas,
- Capacidade de sobreviver em superfícies secas,
- Suscetibilidade a antifúngicos e desinfetantes.
Essa variabilidade indica que não é suficiente reconhecer Candida auris apenas por suas características genéticas — entender seu comportamento fenotípico em diferentes ambientes é fundamental para a vigilância e controle de surtos.
Resistência antifúngica
- Resistência multifármaco é comum, afetando:
- Azóis como Fluconazol e outros
- Equinocandinas,
- Polienos (anfotericina B).
A variabilidade de perfis de resistência implica que terapias empíricas podem falhar. A identificação precisa da cepa e seu perfil de suscetibilidade antifúngica deve ser prioritária em casos clínicos suspeitos de infecção por Candida auris.
Persistência ambiental
- Biofilmes de C. auris demonstram alta resistência a condições ambientais adversas, favorecendo a transmissão hospitalar prolongada.
Biofilmes protegem as células fúngicas contra desinfetantes, aumentando a persistência ambiental e facilitando a reinfecção de pacientes.
O estudo também mostra que biofilmes de Candida auris podem tolerar temperaturas elevadas e secura, o que explica a capacidade do fungo de persistir em superfícies hospitalares por semanas.
Diagnóstico
- A identificação correta requer métodos avançados, como MALDI-TOF MS atualizado ou sequenciamento genético, pois métodos convencionais podem falhar, o que impacta diretamente o manejo clínico.
Relevância Científica e Aplicações
Relevância científica
- O estudo demonstra que C. auris não é homogêneo: seu comportamento clínico e ambiental varia significativamente conforme o clado e o fenótipo.
- A emergência simultânea de múltiplos clados destaca a influência potencial de fatores globais como mudanças climáticas e uso indiscriminado de antifúngicos agrícolas.
Aplicações práticas
- Vigilância: necessidade de incorporar análise genômica em programas de controle de infecção.
- Prevenção: revisão de protocolos de limpeza hospitalar, pois os biofilmes de C. auris são altamente resistentes.
- Tratamento: importância do teste de suscetibilidade antifúngica específico para cada caso.
- Pesquisa e desenvolvimento: demanda urgente por novos antifúngicos e terapias alternativas.
Considerações Finais
- C. auris é um exemplo dramático de como a diversidade genética e fenotípica pode impactar a epidemiologia de um patógeno emergente.
- A adaptação a ambientes hospitalares e a resistência multifármacos fazem de C. auris uma ameaça persistente e de difícil controle.
- Estratégias integradas que considerem essa diversidade são fundamentais para enfrentar surtos e reduzir a morbidade associada às infecções por esse fungo.
- Investimentos contínuos em vigilância genômica, melhoria dos métodos diagnósticos e pesquisa de novos tratamentos são prioritários para conter o avanço global de C. auris.
- Revisão de práticas de limpeza: Como biofilmes de Candida auris sobrevivem a muitos desinfetantes, é necessário rever os protocolos hospitalares.
- Estabelecer protocolos de higienização com tecnologias eficazes para micro-organismos resistentes deve ser um investimento importante para o controle desse patógeno em ambientes hospitalares.
- Candida auris não é um patógeno homogêneo; sua diversidade genotípica e fenotípica exige abordagens múltiplas para diagnóstico, tratamento e controle.
- A diversidade encontrada reforça que estratégias locais devem ser adaptadas às características regionais do patógeno.
- A pressão ambiental global pode continuar a selecionar novas variantes, tornando a vigilância contínua fundamental.
Referências: Santana DJ, Zhao G, O’Meara TR. The many faces of *Candida auris*: Phenotypic and strain variation in an emerging pathogen. *PLoS Pathog*. 2024 Mar;20(3):e1012011. doi:10.1371/journal.ppat.1012011. Disponível em: [PMC10906884](https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC10906884/)
ANVISA. Alerta de Risco GVIMS/GGTES/Dire3/Anvisa no 01/2025
Assunto: Necessidade de aumentar a vigilância para casos suspeitos de Candida auris pelos laboratórios e outros serviços de saúde.
Data: 02 de abril de 2025